Aspetos da vida social e política em Timor-Leste, antes e depois do 25 de abril de 1974

Timor-Leste, devido à sua localização geográfica, está situado na periferia do sudeste asiático, designação recebida durante a Segunda Guerra Mundial. Estando situado muito longe das colónias portuguesas de África e a quilómetros de distância de Macau e de Goa, quando o colonialismo português, começou a desmoronar-se, na década de 1970, isso refletiu-se na vida diária dos timorenses.

Após a Segunda Guerra Mundial, a reocupação portuguesa foi bem-sucedida, algo que não aconteceu no país vizinho, a Indonésia, onde os Holandeses tentaram regressar ao status quo. Uma das razões foi a militarização dos povos indígenas pelas forças japonesas. Sobretudo, com a formação das Forças de Defesa da Pátria, que eram compostas por 69 batalhões em Java e Sumatra e que se tornaram o precursor do exército indonésio, tendo oferecido uma forte resistência aos holandeses. Mas o fator decisivo foi a presença de pessoas esclarecidas que lutaram pelas ideias de independência.

Ao discutir a vida social e política desde o fim da Segunda Guerra Mundial até à Revolução dos Cravos em 1974, o historiador português Fernando Figueiredo, na sua descrição baseada em arquivos europeus, concentra-se mais na presença de instituições modernas em Timor-Leste. Mas há algumas dinâmicas que ainda precisam de ser analisadas. Por exemplo, apesar de Figueiredo ter descrito bem as fundações de clubes sociais em Díli ou dos meios de comunicação na época, principalmente jornais, até à década de 1970, ele não profundou na análise da forma como essas instituições influenciaram a vida social dos timorenses.

Basicamente, estes clubes sociais eram somente para os portugueses e acessíveis aos timorenses assimilados, embora, em princípio, fossem abertos a todos. Além disso, as publicações de jornais tinham circulação limitada e eram acessíveis apenas aos timorenses alfabetizados. Como sabemos, a taxa de analfabetismo, em 1975, permanecia acima dos 90%. Se a referência for o número de timorenses que se formaram em universidades, então haverá uma grande diferença quando se compara Timor-Leste com colónias vizinhas, pois a presença de intelectuais ou a fundação do ensino superior estimulam diretamente a vida social e política de um país.

Por exemplo, nas Filipinas, desde o século XVII, os dominicanos fundaram a Universidade de Santo Tomas, que deu origem à figura de José Rizal, que escreveu Noli Me Tángere (1887), um romance que explora as desigualdades percebidas na lei e na prática em termos de tratamento pelo governo espanhol e pela Igreja Católica para com a população no final do século XIX. O governo colonial executou-o em 1896 depois de acusá-lo de rebelião porque os seus escritos inspiraram o início da Revolução Filipina. Por seu lado, nas Índias Holandesas, que correspondem à Indonésia de hoje, a implementação de políticas educativas ao longo de quatro décadas, de 1901 a 1942, produziu Sukarno, um dos iniciadores do movimento não-alinhado durante a Guerra Fria.

Se compararmos com os países africanos colonizados por Portugal, a criação de universidades começou na segunda metade do século XX, em Angola e Moçambique, quase no mesmo ano, em 1963. Mas antes disso, havia condições para que as figuras importantes desses países africanos completassem o ensino superior nas melhores universidades de Portugal, como Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Eduardo Mondlane. Isso mostra, pois, que, em muitos países coloniais, é a presença de intelectuais que surge como força motriz das dinâmicas sociais e políticas.

No caso de Timor-Leste, no século XIX, os letrados foram formados pelo Colégio Soibada, escola criada em 1897 com a missão de espalhar o catolicismo. Décadas depois, o Liceu, Dr. Francisco Machado, fundado em 1952, iniciou o ensino do primeiro ciclo e, no início dos anos 1960, expandiu-se para o ensino dos sexto e sétimo ano. Antes da revolução, apenas alguns timorenses se formaram em universidades europeias. Por exemplo, um dos filhos de deportados portugueses como Mário Carrascalão, ou João Gonçalves, de uma família Liurai em Timor-Leste, se formou na Bélgica. Ambos tiveram privilégios porque o sistema de ensino superior era inacessível para a maioria das pessoas. Estes dois intelectuais eram conservadores e envolveram-se na formação do partido UDT.

Foi só em 1973 que um total de 38 bolseiros timorenses estudaram em Portugal. E suas convivências com estudantes de países colonizados em África trouxeram ideias progressistas e revolucionárias para Timor-Leste, visto que, desde a década de 1960, as colónias portuguesas em África, que faziam fronteiras com outros países africanos, iniciaram uma guerra de libertação. Embora A Voz de Timor, tivesse relatado vagamente sobre a guerra, os destaques tinham mais uma perspetiva do governo local, para enfatizar a unidade e a aliança entre o povo de Timor e o governo colonial, para combater a luta pela independência em África, que era descrita, na época, como “atos de terrorismo”.

As notícias geralmente levantaram questões de manifestações em apoio ao governo português organizadas por clubes sociais em Díli, uma cidade com cerca de 12.000 habitantes, que o cônsul australiano James Dunn descreveu na época como uma sleepy town. Um dos ‘deportados’ de Salazar, Manuel Carrascalão, como líder da Associação Comercial e Industrial do Timor (ACAIT), foi um dos principais organizadores da manifestação. Assim, o Sporting Clube de Timor, Benfica, União e Académica angariaram fundos para o festival de solidariedade para com as vítimas dos chamados terroristas em África.

Várias campanhas foram realizadas, como a exibição de documentários em Díli, corridas de cavalos e festivais em Liquiçá, o que envolveu os estudantes através da Mocidade portuguesa, contando com a validação da Igreja Católica, que ofereceu missas pelas vítimas dos terroristas. No seu auge, os reinos de Maubara, Liquiçá e Bazartete estavam envolvidos, realizando manifestações, em Díli, no ano de1961. Depois de as tropas de Nehru ocuparem Goa, na Índia, o alvo dos protestos foi também a Organização das Nações Unidas (ONU), já que vários países tinham aproveitado as reuniões deste organismo internacional para criticar o colonialismo português.

No quadro deste contexto político e social, a guerra colonial ou as aspirações de um Timor independente não foram, por isso, temas de discussão diária dos timorenses, durante a década de 1960 e início de 1970, onde a repressão da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) era algo a temer devido à presença de seus espiões invisíveis. Como descreveu o último governador, Lemos Pires, Timor era um verdadeiro oceano de paz em relação às situações enfrentadas por Portugal em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

Se Figueiredo discutiu as funções dos clubes sociais porque a sua pesquisa estava limitada aos arquivos ou, na expressão de que Díli era uma “cidade sonolenta”, o que pode explicar esta dissonância entre perspetivas de uma grande maioria da população timorense e observadores externos, é o fato de haver menos interação com as atividades sociais de raízes timorenses. O espaço social da população não assimilada em geral girava em torno de cerimónias rituais ou mais seculares, em torno dos bazares ou mercados tradicionais, lutas de galos e festas koremetan, como foi descrito no romance de Luís Cardoso, Crónica de uma Travessia: A Época de Ai-dik Funam (1996). Nessas festas, o famoso violinista descendente do moçambicano Abríl Metan sempre tocou música instrumental, tocando junto com o tom jocoso e romântico dos brasileiros Teixerinha e Roberto Carlos. Um timorense assimilado, Domingos Oliveira, que mais tarde se tornaria secretário-geral da UDT, em seu testemunho no Relatório Chega! (2006)” descreveu que, naquela época, as pessoas costumavam falar sobre as suas namoradas, futebol e outras coisas, quando eles iam ao café e restaurante para beber uma cerveja e encontrar os amigos.

Assim, nas memórias dos timorenses que romantizavam o período colonial como rai sei di’ak, havia vida civilizada e o ponto alto da celebração era o Dia de Camões, 10 de junho, com vários jogos em cada concelho. E em Díli, houve cinema, jogos amigáveis com Timor Kupang, entre outros. Mas pesquisa de história oral também revelam atos discriminatórios ou raciais em várias esferas da vida social, como no Liceu, por exemplo, em que a tendência dos professores era a de favorecer os alunos com pais da metrópole; vendedores de ai-leba da periferia não eram autorizados a passar a noite em Díli livremente; e até mesmo o agrupamento de soldados portugueses de origem europeia em barracas militares eram diferentes daqueles de países colonizados. Em uma ocasião, em Díli, no início dos anos 1970, a famosa cantora de fado Amália Rodrigues protestou que ela vinha cantar para todos e que a entrada dos timorenses deveria ser permitidas nos seus concertos fechados.

Entretanto, com o gradual alargamento do sistema de ensino, como o Chega! relata os timorenses começaram a fomentar a reflexão crítica sobre o Regime Colonial cujas características definidoras eram o subdesenvolvimento económico, a corrupção, e a elevada taxa de desemprego, além da discriminação racial e a brutalidade. O relatório enfatizava que os timorenses tinham aprendido com a a última revolta em Viqueque em 1959, provocado por alguns rebeldes que fugiram da Indonésia, o preço que esses rebeldes pagaram diante de um confronto com o regime colonial. No início dos anos 1970, as pessoas politicamente conscientes optaram por protestar por meio de uma abordagem política, que era ao mesmo tempo experimental e sigilosa. Essa geração de jovens criaram um pequeno grupo de discussão anticolonial por volta de 1967, do qual eram membros Mari Alkatiri, José Ramos-Horta, Nicolau Lobato, Justino Mota e Borja da Costa. Eles organizavam-se em células que, em grande medida, atuavam sem conhecimento umas das outras.

O mesmo relatório menciona que a Revista Seara era uma publicação da diocese; tornou-se uma tribuna para estes intelectuais publicarem as suas opiniões com liberdade de expressão limitada. Houve uma intensa discussão sobre a Guerra de Barlaque, mas tópicos que estavam mais relacionados com aspirações políticas poderiam ser punidos. Tal como, José Ramos-Horta foi exilado para Moçambique por dois anos depois que a Direção-Geral de Segurança (DGS) apresentou um relatório sobre a sua sugestão, feita a um turista americano, de que, se Portugal não fosse capaz de desenvolver Timor, então a melhor coisa seria entregar a colónia aos Estados Unidos. Além disso, uma carta aberta intitulada Maubere, meu irmão foi considerado especialmente inflamatória e atraiu a atenção do governo.

Contudo, após a Revolução dos Cravos os timorenses eram mais livres para expressar a sua vontade política. Pois havia esforços para envolver os timorenses na governação, sobretudo por Lemos Pires em sua autobigrafia de 1991, Descolonização de Timor: Missão Impossível?, que afirmou, na época, que dois princípios direcionaram a sua conduta política: “a descolonização deve ser feita com o povo de Timor e nunca contra o povo de Timor” e “descolonizar é passar a gestão dos assuntos de Timor para os timorenses”. No quadro administrativo implicava, por um lado, cercear as regalias dos metropolitanos, e por outro, inserir os nascidos na ilha. Isto começou por a criação de uma comissão no município de Lautém, promotora da primeira prática de eleições por meio do voto no território. No caso, tratou-se de uma timorização de órgãos regionais que eram agora passados para autoridades tradicionais. O segundo, é a criação do Grupo Coordenador para a Reformulação do Ensino de Timor (GCRET), para rever programas e manuais, repensar o sistema educacional e propor algo novo e mais condizente com as necessidades e realidades timorenses. Isto porque o Estado Português quase nada tinha feito no domínio do ensino, relativamente ao currículo utilizado, foi uma cópia do ensino metropolitano.

Na superfície, tudo parecia ser calmo, mas, nas profundezas, havia ondas em movimento, principalmente no que diz respeito aos antigos conflitos que eram vistos como pavios explosivos que poderiam queimar a qualquer momento. Por exemplo, em Lospalos, na década de 1960, com a colocação de alguns mestiços em terras férteis para criar gados, atraindo os servos do Liurai para desertarem e trabalharem para eles, o que começou a criar um verdadeiro conflito entre os mestiços, a população local ou os liurais. Isso foi agravado pela tendência de os mestiços se afiliar à UDT, com a maioria da população afiliada à Fretilin. Por esse lado, algumas famílias de liurais que entendiam o significado da revolução deram liberdade aos seus servos.

Outro ponto interessante é que o Boletim Oficial de Timor quase sempre registrou a nova propriedade de terras durante os anos 1974-1975, que foi dominada por descendentes chineses devido à sua estabilidade económica. Houve um aumento no número de novos registos de propriedades devido à incerteza política daquela época? Na voz de Domingo de Oliveira, após a revolução, os timorenses só conversavam sobre as consequências do 25 de abril. O que devíamos nós, timorenses, fazer? O que seria a melhor coisa a fazer naquela nova situação? No final, todos estes episódios da vida social e política culminaram na guerra civil em agosto de 1975.


Foto: Hermes Peguinho

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